quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Novos Pontos de Cultura para a Bahia

Para quê?
Selecionar e apoiar 150 instituições da sociedade civil sem fins lucrativos por meio de repasse de recursos financeiros do Programa Cultura Viva – Pontos de Cultura. Estas instituições funcionarão como impulso para novas ações e projetos, assim como instrumento de articulação para outros já existentes em suas comunidades de atuação. Elas devem desenvolver ações continuadas em pelo menos uma das áreas, dentre: Culturas Populares, Grupos Étnico-Culturais, Patrimônio Material e Imaterial, Audiovisual e Radiodifusão, Culturas Digitais, Gestão e Formação Cultural, Pensamento e Memória, Expressões Artísticas e Ações Transversais.

Quem pode?
Pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos (como associações, cooperativas, fundações privadas), com sede ou filial no Estado da Bahia, que comprovarem sua existência e atuação na matéria objeto do convênio há, no mínimo, três anos.

Qual o valor?
O valor total do edital é de R$ 27.000.000,00 (vinte e sete milhões de reais) para contemplar 150 (cento e cinquenta) propostas, com R$180.000,00 (cento e oitenta mil reais) cada.

Até quando?
Do dia 02 de fevereiro de 2014 até 18 de março de 2014 (45 dias ao todo).

Sobre as inscrições:
Para efetuar a inscrição, o proponente deverá enviar os documentos devidamente preenchidos, impressos e assinados e salvos em mídia digital por intermédio dos Correios, via sedex ou carta registrada com Aviso de Recebimento, ou entregá-los diretamente no Protocolo da SECULTBA, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 17h, em envelope lacrado. Nos dois casos, o material deve estar etiquetado e endereçado ao:

EDITAL “PROGRAMA CULTURA VIVA NO ESTADO DA BAHIA”
SECRETARIA ESTADUAL DE CULTURA DA BAHIA
PÇA. TOMÉ DE SOUZA, S/N – CENTRO 
SALVADOR – BAHIA – CEP: 40. 020-010

Importante: Somente serão consideradas válidas as propostas postadas a partir do dia02 de fevereiro e até o dia 18 de março de 2014 ou entregues no protocolo da SecultBA até as 17h do mesmo período.

Dúvidas e esclarecimentos: (71) 3103-3457, das 9h às 12h e das 14h às 17h, de segunda a sexta-feira, ou por e-mail: editalpontosdecultura@cultura.ba.gov.br

Anexos

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

As lapinhas (Festa de Santo Reis)

(Créditos: Imagem de internet)
O carro de boi de Mané Oco mal acabara de parar em frente à casa de D. Maroca de Zé Isca, perto da Igreja do Perpétuo Socorro, e uma meninada (eu no meio) saltitante, curiosa e feliz acumulara-se sobre a calçada, atraída pelo sinal de que, ali, iniciava-se um acontecimento, naquela cidadezinha tão vazia de acontecimentos. O carro de boi estava abarrotado de areia molhada. Por onde passou (a Rua das Pedras, o Beco do Velho Miguel do Carmo e a Praça da Bandeira), deixou um rastro de água que vazara por entre as suas tábuas toscas, como se o riacho de onde a areia fora colhida pretendesse visitar as ruas. Os pobres bois de Mané Oco bufavam ao peso da carga pesada. Começavam, ali, os preparativos para a arrumação das lapinhas, os enormes presépios que tomavam as salas das casas de Santana dos Brejos (SB), no sertão da Bahia, as quais o tempo soterrou nas valas do esquecimento. Era o Natal anunciando-se no seu jeito mais brejeiro, singelo, puro e distante da gastança azeitada pelo marketing que movimenta a lógica do interesse natalino. Era uma alegria diferente e funda que vinha e se amoldava na fôrma da alma dos pacatos santanenses. Era um dos acontecimentos mais importante daquele tempo.

A areia molhada era toda peneirada e espalhada na sala para secar. Meninos num frenesi desmedido acompanhavam os preparativos. O calor de dezembro incumbia-se do serviço da secagem, ao cabo de um dia e meio. As donas de casa lançavam-se na fervorosa produção de suas lapinhas, sempre, em família. Uma vez seca e fina pela peneiração, a areia alvinha era cuidadosamente posta sobre a sala como se as mãos daquelas mulheres bordassem uma delicada renda. Jornais velhos recebiam camadas de cola de tapioca sobre a qual eram espalhadas cinzas e carvão em pó extraídos dos fogões e de fornos a lenha. Em seguida, os jornais, já tratados, viravam pedras que, sobrepostas, transformavam-se em morros e, neles, a gruta onde a manjedoura recebia a estrela maior de todo aquele esforço de dias: o Menino Jesus.

Ao seu lado, Maria, a mulher virgem e santa que lhe dera à luz, e o seu pai, José. Ambos deixaram Nazaré e estavam a caminho de Belém, terra do carpinteiro, para o recenseamento obrigatório determinado por César Augusto. A pobre mulher, grávida e já perto de por no mundo o seu rebento, fruto de um plano do Criador, rompeu os mais de cem quilômetros num jumento, e o homem a quem ela fora prometida, mas que não a conhecia na intimidade conjugal, ia a pé. A representação de toda esta história estava nas singelas lapinhas santanenses.

Nesses presépios, miniaturas de bichos rumavam em direção à manjedoura onde o Filho de Deus era adorado pelos Reis Magos Belchior, Baltazar e Gaspar e de quem recebeu ouro, incenso e mirra. A estrela que conduziu os três, feita em papelão e pintada em tinta a óleo prateada, reluzia sobre o morro de pedras que a mão humana obrara nas salas das casas de Santana dos Brejos, a partir de jornais velhos pintados com cinza e pó de carvão.

A meninada serelepe não desgrudava os olhos da manjedoura e de tudo o que compunha as lapinhas. Aos sábados e domingos daqueles nove dias que antecediam o Natal e os seis seguintes que iam até o Dia de Santos Reis, mamãe vencia a timidez e, mãos dadas comigo e meu irmão, César, saía para visitar as lapinhas. Vestíamos as melhores roupas, todas feitas por minha mãe mesmo; recebíamos, no rosto e atrás das orelhas, uma unção de alfazema, dos poucos perfumes que se encontravam nas poucas lojas da cidade, e uma leve aplicação de brilhantina Glostora para aprumar o cabelo de pastinha. Minha mãe, ela própria, perfumava-se discretamente com um certo Madeira de Oriente. Lembro-me bem da caixa em amarelo-ouro com letras vermelhas de estilo oriental onde se lia “Maderas de Oriente”. Abaixo, o nome do fabricante: Myrurgia. Acima, um desenho mouro.

Devidamente vestidos, saíamos para o belo e simples acontecimento da cidade, no fim do ano, nos anos 60 e início dos anos 70, que era visitar as lapinhas. Nós, os meninos, já fazíamos nossas visitas, de manhã à noite de todos aqueles dias, entrando e saindo das casas como se já estivéssemos, ali, sempre. Mas ir com a mãe era uma doce formalidade. Vez em quando, papai também ia. Formávamos, então, um cordão humano, de mãos dadas r tomando as calçadas.

Morávamos vizinhos à casa de D. Maroca e até poderíamos iniciar as visitas a partir de sua lapinha. Mas preferíamos andar uns 70 metros, na mesma calçada de ladrilhos de barro, em sentido contrário, até chegar à casa de D. Maria de Dr. Chico, um dos dois médicos da cidade, para, então, começarmos as visitas. A lapinha de D. Maria de Dr. Chico era discreta e não menos bela. A sala da casa era grande e arejada, com as tantas janelas por onde o pouco vento de dezembro quebrava o calor que, não raramente, chegava aos 40 graus. As visitas eram rápidas. Coisa de dez minutos, tempo suficiente para um breve dedo de prosa com a dona da casa e os outros visitantes. Muitas vezes, as famílias os recebiam com licores de cajuzinhos e jenipapo, tradicionais bebidas feitas pelas donas das casas santanenses.

Dali, mais 30 metros e chegávamos à casa de D. Santaninha. A sua lapinha era igualmente singela e discreta. A nossa visita causava-lhe sincera alegria. Magra e aparentemente sisuda, D. Santaninha, acompanhada das filhas Maria e Zilda (esta última foi minha professora no então primário), dizia coisas carinhosas com palavras poucas e curtas.

Depois, chegávamos à casa de D. Ambrosina, quase vizinha de parede com a de D. Santaninha. Sua lapinha era menor, mesmo porque a sala era pequena. Mas o carinho daquela mulher doce e meiga era proporcional aos saborosos doces de goiaba, de leite, de maracujá verde e de laranja que fazia.

Atravessávamos o beco que separava a nossa casa de então com a sapataria de Edilson Martins e estávamos na casa de D. Maroca. Luzes, tantas vezes sem nexo, e objetos e figuras alheios à vivência do Menino Jesus, como retratos de artistas, povoavam a sua lapinha. Mas o riso fácil daquela mulher bondosa, muito branca e cheia de sardas, equilibrava a composição do seu presépio.

Dali, tomávamos a rua do comércio e, mansamente, chegávamos à casa de D. Ana de João Boi. Ali, uma lapinha diferente nos aguardava. Os animais que, na imaginação daquele povo, também, iam adorar o recém-nascido que viera ao mundo para nos salvar, eram feitos pela própria D. Ana. O meu amigo Sancler Queiroz, avivando a minha memória, lembrou-me que um dos galos da lapinha tinha uma crista enorme.

A próxima e última parada era a casa de D. Amélia. Era grande e atraente a sua lapinha. D. Amélia, um poço de bondade e pureza, jamais deixara faltar os licorezinhos de jenipapo e de cajuzinho dos Gerais. Grudávamos os olhos na manjedoura, nos animais a caminho do Filho de Deus, enquanto mamãe trocava umas palavras com D. Amélia e filhas e papai, na calçada, conversava animadamente com Seu Odilon, marido de D. Amélia e avô de minha “cumadre” Amélia. Não importava a época do ano, ele se sentava à calçada de casa, aos fins de tarde, para espiar o mundo, sempre, acompanhado do amigo Adolfo Brandão, que vinha para a prosa diária impecavelmente vestido de paletó.

As lapinhas eram o acontecimento maior daquela Santana miúda e isolada do mundo. Salvador, que, hoje, fica a quase mil quilômetros de minha cidade, àquele tempo, devido à ausência de estradas, era um lugar quase impensável, e a distância amplificada fazia romper-se qualquer possível elo entre ambas, gerando - isto, sim - um assombroso fosso cultural, social e econômica entre as duas cidade. E Brasília (a capital do País está a 670 quilômetros de Santana) era, então, apenas uma palavra ainda parda nas prosas que varavam as horas, nas esquinas e bares santanenses.

Quase sempre, após a visita à lapinha da casa de D. Amélia, mamãe completava o passeio, indo às casas das tias Nice e Aurita. Na volta, passávamos na casa de D. Nana de Jaime a quem eu passei a chamar de Tia Nana pela amizade que me uniu a Tom, seu filho, e a todos da família.

Quando retornávamos, mamãe queria um pouco de pressa para chegarmos, em casa, ainda, com uma réstia de sol que fosse e, assim, escaparmos da meia escuridão que devorava a cidade, pois que as lâmpadas fraquinhas (quase uma brasa plainando ao lado dos postes de aroeira fornidos toscamente a enxó) – nos faziam andar tateando o chão, entre um poste e outro, onde a luz não chegava, para não sermos surpreendidos pelos buracos ou poças d’água. Pior: depois das 10 da noite, a luz ia embora e tudo era um breu só, ficando apenas as corujas rasga-mortalhas e seus piados ameaçadores e alguns lobisomens aventureiros à procura de um amor proibido.

Quando voltávamos para casa, meu irmão e eu tínhamos assunto para conversas que rompiam as horas, até o sono nos por na cama.

E eu nem sabia que as luzes fraquinhas de Santana dos Brejos brilhavam mais que as luzes imponentes de Paris.

Por Aloísio Brandão.