quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A prosa barranqueira de Osório Alves de Castro

Osório Alves de Castro
Acho que foi no início dos tempos que a Natureza celebrou um pacto com os homens de letras: ela os engendraria de quando em vez, desde que eles narrassem aos outros homens a terra em que haviam sido engendrados. Mais provável, talvez, que, longe de esperar pela volição dessa espécie tão inconstante, cada lugar resolvesse dar à luz, uma vez que fosse, a um ser cuja essência genética estivesse programada para contar ao mundo como era o lugar em que nasceu. E, desse modo, a literatura produzida por esses homens não apenas descreveria seu lugar, mas seria semelhante a ele, teria um ritmo similar, uma expressão análoga, um estilo idêntico. E, mais que isso, talvez os homens a quem o fado exigia que cantassem sua terra fossem, eles próprios, parecidos com a terra que cantavam. Se assim fosse, seria mais fácil compreender por que a literatura de Machado de Assis era rebuscada e petulante como o Rio de Janeiro, por que a prosa de Jorge Amado era sensual e debochada como a Bahia, por que a escrita de Graciliano era seca e dura como o sertão. E, se cada lugar cria sua literatura, os afluentes, as matas, os cerrados, as cidades, os povoados, os arraiais e o homem do grande vale do Rio São Francisco criaram Osório Alves de Castro e sua prosa barranqueira, entrecortada como o próprio rio, úmida como as terras ribeirinhas e, por vezes, afásica, pois assim é o homem a quem retrata.

Extasiado com a prosa do inaudito escritor nascido na margem esquerda do Rio Corrente, fui em busca de sua história nas enciclopédias desta e de outras terras. Qual não foi meu espanto: não havia verbete autônomo, nem verbete indicativo, nem parágrafo dos verbetes indicados, nem uma linha sequer; sequer uma linha. Abespinhado, deixei o peso das enciclopédias, vaticinando açodadamente sua incapacidade de registrar a aldeia global e, pressagiando sua obsolescência, conectei-me a Internet, a enciclopédia do século XXI, onde nada esta ausente, ainda que a presença, não raro, venha recheada de incorreções. E, pasmem os leitores, nenhuma biografia, nenhum estudo acadêmico, nenhuma tese, nada assomou a pantalha eletrônica a não ser três ou quatro menções vinculadas a outros temas. E, no entanto, Osório Alves de Castro deveria estar em todas as enciclopédias, em todos os sites de literatura, ombreando-se a Guimarães Rosa na galeria dos grandes escritores brasileiros. Assim o desejaria o próprio Rosa.

Prosa para isso tinha de sobra o escritor nascido na bucólica Santa Maria da Vitória, em pleno Além São. Francisco. Porto Calendário, seu primeiro livro, lhe trouxe o aceite da critica e lhe valeu o Prêmio Jaboti de Literatura, em 1961. Daí desmembraram-se duas outras obras primas, Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar e Baiano Tiête, formando a trilogia da integração nacional. Apenas isso já lhe valeria um verbete em negrito.

“No ano que vem, caminho de S.Paulo me tem”, essa era pichação que manchava os muros de Santa Maria da Vitória, de Correntina, de Barreiras, cidades do Vale do Rio S.Francisco, e seus autores, jovens que recém completavam 18 anos, logo estariam margeando o Tiête em busca da redenção econômica. Osório Alves de Castro cantou o fado desses jovens e deu vida ao povo ribeirinho, especialmente aquele que não tinha força ou desejo de deixar seu vale querido. E, apesar disso, as enciclopédias lhe regalaram o olvido e até seu povo, aquele que habita os cerrados da Bahia, parece não lhe prestar a devida atenção. Hamlet estava errado: não há esperança de que a memória de um grande homem possa sobreviver-lhe sequer por meio ano.

Vivo estivesse, Osório Alves de Castro tripudiaria de minhas preocupações, afinal, não estava ele redimido pelas palavras de Guimarães Rosa: “Oh, o homem do São Francisco! Pudesse, eu ia lá, em Marília, conversar com ele, três noites e três dias, seguidos, sem pausa nem pio, sem fio nem pavio. Foi para mim uma rajada, um desembesto, um desadoro, um desabalo. Não tenho palavras. Foi um filme doido, vero, cinerama, passando diante de mim, de minha velhice-infância”. Não estava ele redimido pelas teses e estudos que, quando em vez, os jovens das universidades brasileiras entabulavam sobre sua obra. E, além disso, de que valem as enciclopédias frente a arte que teima em brotar das entranhas do homem.

E que homem! Que escritor! Não exprobre, condestável leitor, as exclamações que aí estão apenas para corroborar o espanto que assomou a pena de Rosa quando ele leu a carta, “a espantosa, a estouradora carta, mensagem dos cem mil cavalheiros“: a carta de Osório Alves de Castro, publicada na Revista Diálogo em 1957. Não, não era uma carta, era já um romance, condensado em poucas páginas, mas caudaloso, cheio de corredeiras e quedas d’águas. As águas do Velho Chico molhavam aquelas páginas, o homem do vale navegava naquelas palavras, os coronéis e os atravessadores, exploradores do ribeirinho, mergulhavam naqueles parágrafos barrentos, tudo já estava ali e iria desaguar no mar de Porto Calendário.

Que homem! Que escritor! Alfaiate, nunca renegou seu oficio, mas se de dia alinhavava os tecidos na sua Alfaiataria Rex de noite dava forma as palavras. E que forma! “Antigamente as noticias chegando era como um tempero insosso ganhava travo e a gente comprazia divera... Hoje? ... Que Deus tenha pena de nós. Tudo chega de supetão, arrasa e fica nas angústias como um arco-íris. Sumindo detardinha“.

Que homem! Ele próprio um personagem. De inicio, clarinetista na Orquestra Filarmônica Seis de Outubro, depois construtor de cenários e encenador de peças até que, de repente, viu-se comerciante transportando sal, rapadura e cachaça nas barcaças do São.Francisco. Em 1923, pensou enganar os muros da sua cidade, e foi para o Rio de Janeiro. Lá estudou latim, literatura e política e foi iniciado nas artes da alfaiataria. Mas não se foge do fadário impresso nos muros da inevitabilidade e lá se foi nosso homem morar em S.Paulo, em Marília, onde logo haveria um ponto de encontro para os intelectuais e para os amantes da literatura: a alfaiataria Rex, onde o militante comunista fazia do Capital o remo que o levaria ao porto do socialismo. A ditadura, tão pródiga em espancar os remeiros do futuro, o prenderia antes mesmo de saber-se ditadura, mas das grades ele podia ver a aurora cor de barro, barro que dava cor ao São Francisco...

Osório Alves de Castro, cerzindo palavras na sua alfaiataria, foi ele mesmo um personagem, tão bravo e insólito quanto Pedro Voluntário-da-Pátria, que se preocupava com o estio que sempre vem no fim-de-era: “Desde o Cariri até os cerrados da Bahia, entrando por Minas Gerias, não se vê uma folha verde”. Tão inaudito quanto Doquinha Peste-Bubônica, que ganhou o apelido por ter a língua venenosa como a peste, tão triste quanto o remeiro Salu que a zinga arrebentou os peitos e morreu botando sangue pela boca, incapaz de vencer a água do Quebra Botão. A zinga era vara que lutava contra a correnteza que de tão forte tinha a alcunha de Quebra Botão.

Porto Calendário é rio caudaloso formado de afluentes personagens e nem Macondo os teria gerado com tanta originalidade. Que dizer de Sussu Flores, Shahriar do cerrado, que mandava matar os amantes após dormir com eles, com o consentimento complacente do marido, Coronel Chico Fulô. Ou de Jove de Correntina com seus óculos comprados na Bahia que o fazia ver todas as mulheres nuas, em pelo, e que um dia os escangalhou nos olhos, ao mirar a própria mãe na procissão do Senhor Morto.

A pena do alfaiate era mais destra que a tesoura e a natureza e o tempo se faziam personagens. O Tamarindeiro, que servia de elo entre os que povoam as páginas de Porto Calendário, é tão protagonista quanto o tempo, retratado no Século que assustava os viventes das cidades à beira do Rio. “Um tal século, que vem trazendo na mão esquerda a espada de Moreira César e na direita um punhado de sementes encharcadas de sangue”.

Que escritor! Que romance! Porto Calendário, o romance da saga são-franciscana, é uma barcaça que reúne os remeiros, os pescadores, as prostitutas, as cassandras, os coronéis e todo o povo do Vale e os faz navegar no rio da literatura, ao sabor de ondas dialetais, das correntezas de palavras, dos desvios arcaicos, tudo isso tendo ao fundo a marca d”água do Rio S,.Francisco.

Acho que foi no inicio dos tempos que a Natureza resolveu criar uma planta capaz de prevenir-se da seca que as vezes assolava as terras do cerrado e das enchentes que inundavam as plantações carregando as sementes e o porvir. E assim as flores e folhas dessa planta da família das sensitivas se fecham imediatamente quando tocadas pelos homens, pelas águas ou pelos ventos. Engenhosa a Natureza e os homens que lhe deram por nome Maria Fecha a Porta Prau o Boi Não te Pegar. Mais engenhoso ainda Osório Alves de Castro que fez da planta título do seu segundo livro, um livro poesia, cheio de Marias que se fecham quando tocadas. Elegia ao Velho Chico, o romance corre como o rio, caudaloso e forte: “Veja, Maria!... É o nosso São Francisco. Vindo de longe, correndo do Sul para o Norte, é um abraço na imensidão, unindo as terras e as gentes do Brasil.“ Forma-se, então, o segundo elo da trilogia iniciada com Porto Calendário e que se encerrará com Bahiano Tietê, romance da transformação, que mostra a dor, o sofrimento e a adaptação do povo ribeirinho que agora habita as terras do café. E mais uma vez o Rio São Francisco sela a integração nacional e faz do homem do cerrado um Baiano Tiête.

Osório Alves de Castro morreu em 1978 antes de ver BaianoTietê no prelo. O livro, que só foi publicado em 1990 pela Empresa Gráfica da Bahia, traz um prólogo de Jehová de Carvalho que, indignado, brada contra o mutismo que tomou conta da imprensa nacional quando da morte do escritor: nem um obituário, uma resenha sequer, sequer uma retrospectiva sobre a obra do autor que encantou Guimarães Rosa. Jehová fulminava, como uma cassandra que pressagiava o esquecimento de si mesmo: “Osório Alves de Castro tinha um defeito grave: era escritor baiano e pobre”.

Que seja. Que os obituários não registrem sua morte, que as enciclopédias queiram negar-lhe existência, que a Internet não tenha sites capazes de abarcar sua obra. Não importa. A prosa de Osório Alves de Castro é tronco milenar, é flor do cerrado, é planta que se fecha para quem não sabe tocá-la, é cedro que faz o oco das canoas, é rio perene, ancho, barrento e alongado, e sobreviverá navegando na alma de quem ama a literatura e o Rio São Francisco. É prosa única que “vem do Porto das Calendas onde tudo-tudo se dará“.

Por Armando Avena é escritor, jornalista e economista. Membro da Academia de Letras da Bahia.

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